Há algum tempo que vinha querendo assistir àquele que é considerado o filme que reinaugurou a produção cinematográfica nacional: Carlota Joaquina: Princesa do Brazil, de Carla Camurati. Fiquei espantadíssimo com a brilhante caracterização de Marieta Severo como a infanta espanhola. Aliás, pela primeira vez vi uma Carlota Joaquina tão bem caracterizada. Até então todas as outras eram belas atrizes, como Beth Lago (O Quinto dos Infernos) e Heloísa Helena de Almeida Lima (Independência ou Morte), um injusto tributo à feiúra da princesa espanhola.
Produções deste tipo geralmente tendem ou à heroização de personagens históricas ou à crítica voraz e pejorativa. Esta última tendência parece ser a adotada pelos realizadores do projeto, o que talvez possa ser demonstrado pela teatrização do figurino e pelos ambientes escuros, demonstrando precariedade, tanto em Lisboa (antes da fuga da corte para a América) quanto no Brasil, depois de sua chegada em 1808.
Acredito que precariedade seja o que eles tenham tentado passar por todo o longa: uma infanta espanhola que aos 10 anos é enviada para Portugal para se casar com um infante lusitano, o segundo na linha sucessória, D. João de Bragança (que, com a morte do irmão mais velho viria a tornar-se o herdeiro da Coroa de Portugal, como futuro D. João VI). Ao chegar a Lisboa, em vez de encontrar um belo príncipe em uma resplandecente corte, encontra um verdadeiro bobo alegre, devorador de coxas de galinha, e uma corte triste, escura, sem vida ou sorrisos. Como o título sugere, a produção busca mostrar a trajetória de vida de Carlota Joaquina, desde a sua infância na Espanha, até o fim de sua vida, esquecida em um palácio português, quando então supostamente suicidou-se.
É Marieta Severo quem dá vida, com uma brilhante atuação (como de costume, diga-se de passagem), a uma enérgica Carlota, sem atributos físicos, mas com bastante personalidade e temperamento bem forte. É imprescindível comentar a humanização daquela que era tida como A Megera de Queluz pela atuação de Marieta, principalmente no que diz respeito a seus amores. Neste quesito, a -- então -- pequena atriz Ludmila Dayer apresentou um show de sensibilidade ao conseguir passar para o público os anseios e necessidades de uma pequena princesa, ao mesmo tempo já demonstrando seu forte temperamento.
Em alguns momentos tive a impressão de que a própria Carlota Joaquina era esquecida durante o filme, ocupado em mostrar outras situações. Os pontos mais tradicionais de sua história são, claro, expostos, como seu desagrado em relação ao marido, sua sede de sexo e poder, seu horror à idéia de deixar Portugal rumo ao Brasil, seu horror ao próprio Brasil depois de sua chegada e sua satisfação em retornar à Europa anos mais tarde, com direito à tradicional cena da já rainha a deixar seus sapatos para trás, no intuito de não levar consigo nem a poeira dos sapatos.
Aliás, cabe destacar que o subtítulo Princesa do Brazil (com "z" mesmo, como era escrito na época) não se deve -- ao contrário do que pensei a princípio -- ao título que a própria Carlota Joaquina levava consigo na qualidade de esposa de D. João. Isso porque, desde a década de 1640, todos os príncipes herdeiros de Portugal carregam o título Príncipe do Brasil. Logo, D. João, ao tornar-se herdeiro do trono lusitano, tornou-se automaticamente Príncipe do Brasil e sua mulher, Princesa do Brasil. Apesar disso, o subtítulo justifica-se justamente pelo desprezo da Princesa Carlota ao Brasil, o que fica claro, quando, nas cenas que precedem o embarque da família real para a América, no auge de sua fúria, a princesa grita a D. João que não quer ir para o Brasil, que não quer ser Princesa do Brasil, o que, na verdade, ela já era. Um certo mal estar histórico por parte do roteirista...
Falando nele... D. João, vivido por Marcos Nanini, é tomado como um paspalhão, caçador de borboletas, medroso e que, por sua falta de qualidades políticas, toma decisões de Estado ao sabor do vento. Trata-se de uma linha de interpretação forjada no Brasil do século XIX, na qual buscava-se denegrir um passado português na busca da formação de uma identidade nacional. Assim, por mais que a passada ligação com Portugal dê ares de civilidade à "civilização brasileira", muitos aspectos portugueses são tomados como algo velho, que precisa ser negado. Assim, D. João ganha a popular imagem de uma pessoa inútil e péssimo político, o que é amplamente discutido pela historiografia contemporânea.
D. João e Carlota ao chegarem ao Brasil
O filme apresenta alguns problemas que podem levar o público à confusão: a menção à Carlota como rainha quando ela ainda era princesa, por exemplo, não permite que nos localizemos precisamente no tempo histórico. Além disso, a confusão em relação à situação política do Brasil (colônia ou Reino Unido a Portugal e Algarves) e o uso inadequado de pronomes de tratamento, com a -- tradicional -- confusão entre Alteza e Majestade também podem causar certa confusão.
Last but nos least, o Brasil encontrado pela família real é retratado como um lugar imundo e exacerbadamente confuso, com ruas que mais parecem uma daquelas tradicionais feiras orientais. A natureza, claro, não poderia deixar de ser destacada, ainda que com um tom talvez (vejam bem, talvez) um pouco pejorativo, dando a idéia de selva. Mais uma vez me parece vir à baila a idéia da precariedade da colônia americana (bem como do Império Português), já que as amplas modificações urbanísticas promovidas pelo governo de D. João durante sua estada no Rio de Janeiro não são sentidas ao longo do filme e a impressão de uma cidade suja e confusa permeia toda a produção.
Vale a pena dar uma olhada. Cabe notar que, como todos os outros filmes, novelas, minisséries etc., não é possível levar o apresentado como uma exposição fiel de uma pretensa verdade histórica, nem mesmo como a exposição de apenas uma interpretação a respeito daquele tema. Geralmente os produtores, roteiristas e diretores dessas produções não são historiadores e acabam pegando elementos das mais diversas interpretações, de maneira a deixar suas histórias interessantes para o público, o que, não necessariamente, desqualifica a produção. Para quem gosta de filmes no estilo biográfico é uma boa pedida!
Até mais!!!
=)